domingo, 16 de outubro de 2011


Fonte: Suástica Azul
Autor: Lauro Edison (Paralelo)
Problema do Mal 1
Nunca, por nenhuma razão, se poderia desejar que a dor aumentasse. Da dor, só se podia desejar uma coisa, que parasse. Nada no mundo era tão horrível como a dor física. Em face da dor não há heróis, não há heróis, ele pensou e tornou a pensar, torcendo-se no chão, segurando à toa o braço esquerdo invalidado – 1984, George Orwell
Não sei se Deus existe. Mas seria melhor para sua reputação que não existisse  – Jules Renard
Talvez você nunca tenha parado pra pensar nisso, mas quando se trata de acreditar em algo ou não, há três caminhos: ou crer que é, ou crer que não é, ou não crer em nada. Muita confusão seria evitada se algumas pessoas compreendessem isto. Mas a maioria confunde a “ausência da crença” com a “crença na ausência”. Falo disto porque, a princípio, a mera ausência de crença em Deus pareceria ser suficiente, na total falta de evidências. 

Em geral, as respostas ao problema do mal se beneficiam do fato de que o conceito de “mal” é abstrato, impreciso, tem seu quê de subjetividade.

Mas no caso do Deus totalmente bondoso, isto é, onibenevolente – e também onipotente, onisciente e onipresente – no qual têm fé as três maiores religiões do mundo, pode-se ir mais longe e afirmar sua inexistência, isto é, fundamentar a crença em sua ausência: com certeza não existe um Deus onibenevolente e onipotente. Noventa por cento da humanidade acredita num Deus assim, embora a óbvia existência do Mal no mundo torne logicamente impossível a existência de um Ser com tais características. Epicuro percebeu isto ainda séculos antes de Cristo:
Deus quer acabar com o mal mas não é capaz?
Então não é onipotente.
É capaz mas não o quer fazer?
Então é malévolo.
É capaz e quer fazê-lo?
Então de onde surge o mal?
Não é capaz nem quer fazê-lo?
Então por que chamar-lhe Deus?
Em teologia e filosofia, este ponto é conhecido como o “Problema do Mal”. Penso que a discussão poderia parar no argumento impecável de Epicuro. Mas contra-argumentos religiosos não faltaram nos últimos dois mil anos. Em geral, as respostas ao problema do mal se beneficiam do fato de que o conceito de “mal” é abstrato, impreciso, tem seu quê de subjetividade e, portanto, se presta a toda sorte de distorções e convenientes interpretações. É fácil ver que isto ocorre quando analisamos as principais objeções teológicas. A primeira delas é drástica. Afirma-se que o mal não existe e ponto final: 
Deus é o único que possui dignidade intrínseca, e se Ele decide que a existência do mal irá servir, no final das contas, para glorificá-lo, então, o decreto é, por definição, bom e justificável. Alguém que pensa que a glória de Deus não é digna da morte e sofrimento de bilhões de pessoas tem uma opinião muito alta de si mesmo e da humanidade – Vincent Cheung, teólogo calvinista. 
Mas, na dor física, o mal existe com certeza. 
Esta é, em minha opinião, a versão mais poderosa do “problema do mal”. A situação constrangedora em que algumas teologias se meteram só piora quando se trata da dor física, pois já não se pode sustentar que, neste mundo, reina a mais completa bondade. Os proponentes deste absurdo ousam formular todos os horrores de tal modo que pareçam, num contexto maior, genuinamente bondosos. 

Assim, quando um inocente é torturado, não é que o mal esteja acontecendo positivamente, mas apenas que Deus deve estar em horário de almoço.

Outros se valem de uma conveniente metáfora, afirmando que o mal só “existe” num sentido muito restrito, isto é, no mesmo sentido em que “existe” a sombra. Ora, o que é a sombra? Nada, apenas a ausência de luz. O mal, do mesmo modo, não é nada, somente a ausência de Deus. A metáfora parece realizar uma tarefa logicamente impossível: afirmar que o mal existe e não existe. Assim, quando um inocente é torturado, não é que o mal esteja acontecendo positivamente, mas apenas que Deus deve estar em horário de almoço. 
Um terceiro argumento admite a existência do mal, mas a justifica: trata-se de punição dos pecados do homem. É questão de justiça. Segundo a Igreja Católica, por exemplo, Deus cria o homem e, com sua infinita bondade, lhe concede a dádiva do livre-arbítrio. Esta “dádiva”, entretanto, tem a conseqüência crucial de tornar o homem responsável por suas ações, deixando então o caminho aberto para que, ao menor deslize, o sujeito vá parar no décimo círculo do último inferno e viver a apoteose do eterno suplício. 
E ainda, talvez na “boníssima” intenção de tornar o teatro da vida mais emocionante, Deus impõe ao homem uma série de instintos – como o desejo sexual promíscuo, a necessidade de status, a propensão à violência, a curiosidade questionadora – que o inclinam a incidir, com precisão cirúrgica, em cada item da lista oficial dos pecados. 
Seria o caso de perguntar: com um Deus desses, quem precisa de um Lúcifer? 

A dor física é a evidência mais incontestável da existência do mal.

Penso que, embora muito absurdas, tais respostas religiosas são ainda, num sentido lógico mínimo, sustentáveis. E isto porque, como já apontado, o conceito de “mal” é um tanto obscuro. E, por ser obscuro, há maneiras de afirmar que acontecimentos como o 11 de setembro não são, afinal, provas da existência do mal no mundo. Ou, se são realmente maus acontecimentos, é por serem uma justa punição aos pecados humanos. Há excelentes argumentos dando conta de cada uma das objeções ao problema do mal – afinal, nenhuma delas é razoável. Mas, em vez de entrar em discussões infindáveis sobre a natureza do mal, proponho um atalho muito simples: esquecer toda forma de mal, exceto uma. A dor física. 
A dor física é a evidência mais incontestável da existência do mal. Não um mal metafísico, abstrato ou moral, como convenientemente encaram os religiosos, mas um mal concreto, real, imperativamente sofrido na consciência e, por isso mesmo, impossível de ser relativizado. No relato bíblico vemos que o sofrimento de Cristo não se dá por tristeza ou depressão, mas é puro e visceral martírio físico. Dois mil anos depois, graças à ciência e à polícia, é cada vez mais incomum que um ser humano seja acometido por tais dores insuportáveis – muito embora policiais ogros torturem prisioneiros. De qualquer maneira é ela, a dor física, o pior de todos os sofrimentos conhecidos. Para evitá-la uma pessoa seria capaz de autorizar, e mesmo executar, o assassinato cruel das pessoas que mais ama.
Problema do Mal 2f
Como mostram, de modo muito realista, algumas seqüências insuportavelmente fortes dos filmes Jogos Mortais, as pessoas escolhe-riam a própria morte em lugar de en-carar a dor física. Na abertura do segundo filme, por exemplo, vemos, com um nó na garganta, o desespe-ro de um homem que, para desligar um aparelho mortal acoplado ao seu pescoço, precisaria perfurar o pró-prio olho com uma faca, em busca de uma chave que foi posta dentro de seu crânio. 
Provavelmente, ao ler isto, você teve sua pressão aumentada, suas pupilas dilataram, seus músculos ficaram tensos. É a mera imaginação da dor fazendo seu organismo entrar em estado de defesa. Se um maníaco te colocasse nesta situação, o que você faria? No orkut, em uma comunidade sobre Jogos Mortais, a maioria absoluta dos participantes admitiu que, no lugar do personagem, escolheria a morte. A dor física pode ser mais forte do que a vontade de viver.
Não é preciso, contudo, que um louco nos coloque frente a frente com o terror absoluto. Algum azar pode ser suficiente. E, na realidade, há muitas histórias terríveis de sofrimento físico. Uma das piores que ouvi falava de alguém que teve suas duas pernas devoradas por um urso antes que alguma ajuda chegasse. Outra, de um pescador que teve seu braço preso no motor do barco, contada na série Instintos, da BBC: para não se afogar ele cortou o próprio braço com uma faca. Só foi capaz de tamanho sangue frio porque, em momentos de susto e desespero, a adrenalina do organismo libera substâncias analgésicas que reduzem a dor. 

“Camarada, por favor, peça ao oficial que acabe conosco com uma bala”, suplicou o soldado russo.

Mas alguns não têm sequer este desconto: 
“Camarada, por favor, peça ao oficial que acabe conosco com uma bala, suplicou o soldado russo. Depois de 3 horas dentro de um tanque com água gelada, ele já não suportava mais a sensação de congelamento no corpo”. Assim começava a matéria da revista Superinteressante sobre a medicina nazista. Em casos de tortura lenta, tão comuns na história, não há nenhum susto e nenhuma adrenalina, somente o pavor traumático e a dor insuportável. 
É difícil imaginar como um universo governado por um bom Deus poderia comportar tais horrores. Quando se trata de males éticos ou abstratos, os religiosos até podem balbuciar qualquer coisa sobre as inescrutáveis boas razões de Deus, ou sobre o mal não ser “de verdade”. Mas é absolutamente impossível imaginar um Deus bondoso criando algo terrível como a dor física. Se um Deus criou tal coisa, não há motivos para considerá-lo menos desprezível do que um Adolf Hitler, responsável por forçar crianças esquálidas a entrarem vivas dentro de fornos. Tudo isto existe, terror real, irrelativizável, sob as barbas do todo-poderoso. 
E isto nos leva a um fato que, aqui, merece toda a evidência: em nome de um Deus presumivelmente bondoso é que as grandes religiões promoveram muitos dos mais indizíveis sofrimentos da história da humanidade. Pessoas queimadas vivas; deixadas aProblema do Mal 3apodrecer em gaiolas; empaladas; destroncadas. Inquisições, retiradas de clitóris e a costura do órgão sexual feminino de modo que, durante uma vida inteira, o processo de urinar se tornasse quase insuportável. Além de tudo algumas correntes religiosas estimulam a auto-flagelação e as penitências, bem como inspiram atos estúpidos como este:
É a famosa auto-imolação do monge vietnamita Thích Quảng Ðức, em 1963. Obviamente, morreu. Protestava contra o governo de Ngô Đình Diệm, que oprimia a religião budista. Toda forma de opressão, inclusive contra a religião, é intolerável, sem dúvida. Mas, para um tirano, é bem conveniente que seus oponentes “protestem” deste modo! 
O leitor conhece o simulador virtual de relacionamentos The Sims? É um game onde os personagens comem, vêem TV, namoram, vão ao banheiro e, enfim, vivem um cotidiano trivial. São, contudo, bonecos virtuais. É tudo mera simulação. Pois bem, eis onde quero chegar: o que você diria de um programador que fosse capaz de dar consciência aos personagens do game e, além disso, fazê-los capazes de sentir dor? 
Isto lembra a crueldade absoluta do vilão Thanos, dos quadrinhos da Marvel. Ele deu vida à Nebulosa, uma criatura cuja única realidade era o sofrimento físico mais intenso. Para esta criatura, Thanos era o deus criador – mas este deus mereceria adoração?
Problema do Mal 4
Salvo imperdoável sadismo divino, a existência da dor é mera questão de azar. A dor evoluiu, através da seleção natural, no sentido de alertar o organismo sobre algum ataque físico em andamento. Ao pisar em um prego, por exemplo, a reação instintiva e imediata do organismo é retirar o pé do local. É um mecanismo de defesa exemplar, do ponto de vista da sobrevivência. 

Mas a natureza é cega. E, em certo sentido, é bom que seja cega.

Um raro distúrbio neurológico impede algumas pessoas de sentirem dor e, por conta disso, elas em geral morrem cedo, obviamente por conta de ferimentos e infecções. Infelizmente este mecanismo cerebral, ao funcionar corretamente, abre a possibilidade para que alguém amarre o seu pé e impeça você de retirá-lo enquanto o serra aos poucos. 
Seria perfeitamente viável, estruturalmente, que nossa reação fosse mecânica, e não dolorosa. Assim como somos geneticamente programados para sentir dor, poderíamos ser – idealmente – programados para simplesmente retirar os pés dos pregos do caminho, mecanicamente e sem dor, do mesmo modo que respiramos. Mas a natureza é cega. E, em certo sentido, é bom que seja cega. É preferível pensar que a culpa é do acaso do que saber que há um culpado consciente envolvido. Deus, por exemplo. 
Se, de modo improvável, existir um Deus onipotente que criou ou permitiu a dor, ele é malévolo e merece todo o nosso desprezo. 
A existência de um Criador bom, dados os fatos, está fora de questão.

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